sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

LUA E OS MOSQUITOS DA TIA CRIS




Havia uma dúvida no ar: será que a Lua sabia mesmo escrever? Como então sabia ler? Essa questão inquietava a Pipoca, e piorara desde que o caso do Tiririca veio à baila. A amarela tinha pavor de falcatruas! Em algumas ocasiões a Lua fizera trejeitos de que estava anotando coisas, mas ninguém havia visto qualquer letrinha dessas! O Pingo tinha certeza que ela não escrevia e nem lia, que era tudo encenação, mas certeza ninguém tinha. Pipoca estava a pensar nisso quando ouviu

Lá lá lá lou
A Zambézia acabou!
Pra casa da Tia Cris
Eu vou! Eu vou! Eu vou!

Era a Lua cantando enquanto juntava suas figurinhas de pães de queijo. Ela tinha a maior coleção de fotos deles. Pipoca se aproximou e perguntou de repente:
- Lua! Você sabe ou não escrever?
- Ué, Pipoca! Claro que sei – respondeu a branquinha.
- O Pingo jura que você não sabe!
- Mas eu sei sim. Só que não consigo segurar o lápis na patinha.
- Nenhum de nós consegue! – respondeu a Pipoca.
- Pois é! Então por que você perguntou se todos somos assim ?
- Sei lá! Bobeira, falou a Pipoca. – Mas você está fazendo o quê?
- Pegando as minhas figurinhas de pães de queijo e guardando porque agora tenho que preparar a minha aula, disse a Lua.
- Aula? Que aula? Novamente a escola? – perguntou a Pipoca, já antevendo problemas com os demais cães.
- É uma aula muuuuito especial e em homenagem a minha Tia Cris – disse a Lua.
- Como assim?
- Simples! Vou explicar a origem dos mosquitos, falou a branquinha.
- E o que a Tia Cris tem a ver com mosquitos, Lua?
- Ela tem tuuuudo a ver. Lá na casa dela tem penudos – que eu vi – e eles gostam de comer mosquinhas e mosquitinhos.
- E daí?
- Daí que vou contar de onde saem os mosquitinhos que a Tia Cris serve para os penudos, disse a Lua.
- Lua. Pelos deuses caninos! Pare com essa história abestalhada! A Tia Cris não serve nenhum mosquitinho pra penudo algum! Ela serve comidinhas ...
- .... mosquinhas e mosquitinhos! É sim! É!!!!! – choramingou a Lua
A Pipoca não podia ver o focinho choroso da Lua! Isso não!
- Tá certo, Lua! Tá certo! – respodeu a amarelinha. A Tia Cris vai entender! – pensou.
- Então Pipoca, chame todo mundo porque a aula vai começar logo que eu guardar as minhas figurinhas. Obaaaaaaaaaaaaaaaaa.
Pipoca coçou a orelha direita e depois a esquerda enquanto pensava como faria para que os demais cachorros entrassem nessa aula! Aí teve uma idéia.
- Matilhaaaaa – gritou a Pipoca. – Venham todos! Tem coisas aqui!!!
Em menos de alguns segundos já estavam todos lá: Chiquinha, Pingo, Azeitona, tio Chicão e Jujuba ajeitando seu boné e franzindo o focinho, e como sempre foi a primeira a perguntar:
- Que aconteceu? Por que interromperam meu sono? Que coisas?????
- Matilha. A Lua vai contar uma historinha e ....
- Nem pensar! Respondeu a Jujuba. – Ela de novo com essa mania de escola? Pensa que a gente é o quê, hein? Fica sempre perguntando ... perguntando ... – Se isso é a tal “coisa” .... deixa pra lá!
- Jujuba, disse a Pipoca, não custa nada ajudar. Ela ainda é filhote e precisa se ocupar de alguma coisa que não seja fuçar onde não deve! Lembre-se que a mamãe está saindo da tal tese sobre a Zambézia muito cansada. Um pouco de boa vontade cai bem, não é?
- É isso mesmo, disse o Pingo. – E no final sempre sobra um tantinho de comidas e a gente se diverte com ela.
- Certíssimo, menino Pingo, disse tio Chicão. – A menina Lua precisa mesmo de incentivos culturais! Chame-a, garota Pipoca.
- Luaaaaaa. Pode vir! – gritou a Pipoca.
- Chamaram? É mesmo? Todo mundo veio pra saber dos mosquitos da Tia Cris? – falou a branquinha.
- E isso agora? O que tem a ver a Tia Cris com mosquitos .... ??? – falou a Jujuba
- Tudo! Tudinho! A Tia Cris tem mosquitinhos pros penudos e eu sei de onde ela busca os mosquitinhos! Sei sim! – falou a Lua.
- Minha nossa! – exclamou o Pingo. – Agora ela exagerou!
- Lua, falou a Chiquinha – que é isso? Onde já se viu falar isso da Tia Cris? Mosquitos são nocivos à saúde e ....
- .... e são comidas de penudos! Fazem parte da cadeia alimentar – disse a Lua.
- Cadeia alimentar? Desde quando se prende comida? – perguntou Jujuba. – Tem penitenciária pra salsicha? Cela pro macarrrão? Revista das roupas do coxão mole? Habeas corpus pras nozes serem abertas? E o descaroçador de azeitonas é pra torturar? E falou olhando pra Azeitona! Que perigo de idéia!
- Juju, às vezes você me espanta! Cadeia alimentar é o ciclo de alimentação de todos os seres vivos. Um alimenta o outro, não é tio Chicão? - perguntou a Lua.
- Certíssimo, menina Lua – exclamou tio Chicão, surpreso pelas palavras da cadelinha. – E de onde a menina tirou tanto saber?
- Dos livros. Sempre dos livros. A mamãe e o papai têm muuuuuitos livros! – Tem sim! E euzinha – que sei ler – pego alguns deles e leio tudinho! - respondeu a branquinha.
- Pois bem! Vamos sentar em roda pra Lua poder contar a tal história mosquital! – falou a Azeitona.
Todos em círculo, cada um procurando a melhor posição e a Lua começou.
- Houve um tempo em que os homens falavam com as árvores, com os animais e até mesmo com a água e a terra. Todos se entendiam e se ajudavam. Mas tinha os espíritos. E tinha espírito bom ...
... anjinhos? – perguntou o Pingo
- .... sim. Anjinhos, anjos e anjões, respondeu a Lua. – Mas tinha os diabinhos também! Esses eram terríveis e faziam coisas feias...
- Que coisas feias? – perguntou a Azeitona.
- Coisas como roubar os claclás dos outros, comer os pães de queijo que não são seus, mostrar pro papai onde se escondeu o shampu canino .... coisas assim! – disse a Jujuba.
- Certo, Juju – disse a Lua. – E essas coisas feias também podiam ser enganar as pessoas.
- Pessoas são enganadas com facilidade, disse a Lulu, que chegava sempre sem avisar, de patas dadas com o Kousky. Agora estavam inseparáveis.
- Oi Lulu. Oi Kousky. Sentem-se aí, disse a Chiquinha. – A Lua está contando uma historinha ...
- Tentando! Estou tentando! – resmungou a branquinha. – Vamos em frente! Então esses diabinhos podiam se transformar em humanos e criar a maior confusão no mundo das gentes! Aí fingiam que eram papai ou mamãe ...
- Que perigo! – exclamou o Pingo! Mas a gente sabe quando é ou não é. O cheiro não é o mesmo!
- É assim pra bicho, mas não para as gentes! – ponderou Tio Chicão. Os humanos são bem limitados em seus sentidos.
- Posso continuar? – resmungou a Lua.
- Sim, menina Lua. Continue, disse tio Chicão.
- Pois bem. Teve um dia que um desses diabinhos aproveitou que um papai saiu de casa e se transformou em um homem igualzinho ao papai e nem a mamãe conseguiu perceber que não era o papai! E os filhos do papai de verdade acreditaram que o papai de mentira era mesmo o papai de verdade.
- Que coisa! Falou a Chiquinha. – E aí, Lua?
- Pois é! Quando o papai chegou de volta viu que dentro de sua casa estava o papai de mentira. Como o papai de verdade era muuuuuito esperto, como o nosso papai é, ficou bem quietinho, foi se aproximando e chegou embaixo da janela e viu que os filhos estavam em volta do papai de mentira enquanto a mamãe fazia a comida. Aí o papai de verdade esperou os filhos saírem para buscar a lenha pro fogão ...
- Que história antiga, Lua! Onde já se viu fogão à lenha? Não tinha microondas? – interrompeu a Jujuba.
- .... porque a mamãe precisava, completou a Lua, enquanto olhava raivosamente para a Jujuba que se encolheu toda. Vixessanta! E a branquinha continuou. – Assim que um dos meninos pisou no jardim, o papai de verdade o chamou e falou pra ele que aquele papai que estava lá dentro era de mentira. E aí falou também que ele deveria entrar e pedir para a mamãe e os outros garotos saírem, todos disfarçando pro papai de mentira não perceber. O menino fez tudo direitinho e logo todos estavam lá fora, menos o papai de mentira. Assim que estavam todos juntos começaram a gritar e correr pelos caminhos da floresta. Isso despertou os mágicos ...
- Que mágicos são esses agora, Lua? – perguntou o Pingo. – Era uma floresta ou um circo?
- Eram mágicos, gente que faz as coisas aparecerem e desaparecerem, mas de verdade, não com cartolas e coelhos. Mágico de verdade! – tentou explicar a Lua depois de se enrolar toda.
- Menino Pingo, os mágicos que a menina Lua se refere são aqueles que mesmo sendo humanos são os mensageiros e intermediários entre os homens e os deuses. Em algumas culturas são chamados de xamãs. Em outras são os pajés, explicou tio Chicão.
- Entendi, falou o Pingo.
- Pois é! Esses mágicos chegaram perto do papai de verdade e sua família e souberam que o diabinho havia se transformado em um papai de mentira. Daí que pegaram ele, o papai de mentira e colocaram dentro de um vaso de cerâmica e ...
-Peraí Lua. Que coisa toda é essa? Como é que os mágicos conseguiram colocar o diabinho dentro do tal vaso? perguntou a Lulu. – Não parece ser tão fácil assim!
- Não foi mesmo! Esses mágicos eram mágicos mesmos e fizeram a mágica que fez o diabinho entrar no vaso e ....
-Lua! Assim não vale! Tem que explicar tudo direitinho – disse a Pipoca.
- Tá certo! Tá certo! Esperem que eu vou ver como esses mágicos fizeram – disse a branquinha enquanto saía pra biblioteca da mãe.
- Eu quero ver onde entram os mosquitos da Tia Cris nessa história – falou o Pingo.
- Não se preocupe, Pingo, que ela arranja um jeito, disse a Azeitona.
A Lua voltou toda sorridente e foi logo dizendo: - Os mágicos tiveram ajuda das forças da natureza! Foi assim!
- Forças da natureza, Lua? Mas o que são elas? – perguntou a Jujuba.
- Ah não! Isso não tá na historinha! – resmungou a Lua, ao mesmo tempo que pedia socorro para o Tio Chicão, com um olhar apavorado.
- Menina Jujuba, disse tio Chicão, todas as atividades da natureza representam sua força. Veja o vento, a chuva, o calor, o frio. Tudo isso pode fazer muitas coisas.
- Viu? Viu? – falou a Lua enquanto dava uma piscadela pro tio. – Pois é. Essas forças ajudaram os mágicos a colocar o diabinho dentro do vaso de cerâmica. Aí ele ficou preso.
- E daí? Onde estão os mosquitos? –perguntou o Pingo
- Calma. Muita calma nessa hora que ainda não acabei. Eles, os mágicos, colocaram uma tampa muito forte no vaso e colocaram numa fogueira para que virasse um monte de cinzas. Assim aconteceu. Mas quem disse que o diabinho morria assim? Nada disso! Para acabar com o danado era preciso afogá-lo – explicou a Lua.
- Afogar as cinzas? Como se afoga as cinzas? – questionou a Azeitona. - Nunca vi um carvão afogado!
- Não sei! Isso eu não sei! – gritou a Lua. – Só sei que tinha que afogar as cinzas do diabinho. É sim! E se era assim ... assim era! Ninguém ousou discordar! Lua irritada era algo inominável.
- Pois bem! Aí que os mágicos chamaram os meninos mais fortes da floresta e eles, os meninos, deviam ir até ao lago láááááá longe e jogar o vaso. Eles levantaram o vaso pelas alças e ...
- Vaso com alça? – perguntou Pipoca.
- Que diferença faz se tinha ou não alça, Pipoca? – perguntou o Pingo.
- Nenhuma! Resmungou a amarela. – Mas vaso com alça não é uma ânfora? – falou para si mesma. – Ânfora é vaso antigo ....
- Mas a história tem forno! Por que não pode ter ânfora? ponderou a Chiquinha.
- Pois bem. Eles, os meninos, pegaram o vaso-ânfora e saíram pelo caminho da lagoa. Era longe e logo eles se cansaram. Daí que pararam para dormir e ...
- Alguém roubou o vaso? – perguntou a Chiquinha.
- Não! – respondeu a Lua. Ninguém roubou nada! ]
- Mas o que aconteceu afinal? – perguntou o Kousky que queria saber onde é que entraria a história dos mosquitos da sua mãe.
- O vaso ficou ali no chão e quando eles acordaram ....
- Sumiu?
- NÃO. NÃO SUMIU! – gritou a Lua. – Estava lá no chão, do mesmo jeito!
- Ah! Tá certo! – falou o Kousky, um tanto assustado porque não conhecia bem o mau gênio da Lua quando irritada!
- Pois bem! – falou a Lua. - O vaso estava lá, no mesmo lugar, mas os meninos estavam cansados de carregá-lo, porque era pesado, e achavam que se o deixassem lá no meio do mato, na floresta onde os homens não passassem, teriam cumprido a sua missão. - Mentirinha de nada – pensaram. Pegaram o vaso e quando iam escondê-lo ele caiu e se partiu ao meio.
- Devia ser uma ânfora falsa – falou a Pipoca.
- E aí? O que aconteceu? – perguntou o Pingo, enquanto torcia o rabo com tanta aflição.
- Daí que as cinzas caíram no chão, ué! Respondeu a Lua. – O que você esperava? Caiu tudo!
- Onde é que entra os mosquitos? E a Tia Cris? – perguntou a Lulu.
- Simples, respondeu a Lua. – Quando as cinzas tocaram o chão se transformaram em mosquitos.
- E a tia Cris? – perguntou a Azeitona. – Onde estava a tia Cris?
- Simples. A tia Cris sempre cuida de penudos, de peludos, de miantes, compra pães de queijo e por isso ela já era um dos anjinhos. Então ela pegou os mosquitos e guardou num vaso e depois deu pros penudos dela. É sim!
- Menina Lua, falou tio Chicão e seu latido sério deixou todo mundo preocupado. – Uma parte dessa história tem sentido, mas o final não. Acerte isso! Não se pode fazer mentiras com coisas sérias. Lendas são importantes para as sociedades em que estão inseridas.
- Tá certo, tio. Vou explicar. Eu peguei essa historinha do papai de verdade, do papai de mentira, dos filhos, da mamãe e dos mágicos, todos eles, de um livro da mamãe. Achei bonitinho e por isso coloquei a Tia Cris nela porque ela cuida dos penudos - e por isso a tia Cris é anjinho - e os penudos gostam de mosquitinhos. Daí pensei que se os mosquitinhos pudessem entrar num vasinho poderiam chegar nas mãos da tia Cris e todos ficariam felizes, falou a branquinha. É o meu presentinho de natal pra Tia Cris porque ela anda muuuuito tristinha ultimamente, e isso não pode! Não pode não! Natal é alegria!!!! Tem árvores, bolinhas coloridas, luzes e mosquitinhos pros penudos!

Era impossível não se emocionar com aquela inocência. Até o Kousky concordou e até falou que realmente a mãe dele tinha um vaso pra colocar os mosquitinhos. E falou piscando para a Lulu. Ela confirmou tudinho. Mas tio Chicão não aceitou isso como final e exigiu que a Lua buscasse o tal livro de onde havia tirado a história. A branquinha apareceu com ele preso entre os dentes: Legends of the Amazon, de Vinicio Ortiz. Lua lendo em inglês? Como assim?
- Nada disso, gente. Mamãe fez a tradução e eu li.
- Certo, menina Lua. Falar a verdade é muito bom. Vejamos então - falou Tio Chicão que por ser um pastor alemão ... aprendera inglês - .... trata-se de uma lenda dos povos Quichua, da selva amazônica pertencente a América hispânica, que explica a origem dos mosquitos.
- Só sei que nessa tal lenda tem mosquitinhos e que alguns deles são parentes daqueles que servem de comida pros penudos da Tia Cris. São sim porque mosquitinhos vão voando ... nascendo ..... voando ... e alguns chegam até aqui! Eu li num livrão da mamãe. E se eu conseguir arranjar um vasinho e colocar mosquitinhos posso ir à casa da Tia Cris comer pão de queijo e encher ela de lambidonas. Aí ela pega os mosquitinhos, dá pros penudos e vai sorrir muito porque penudo é tudo de bonito, como o espírito do Natal.

Não dava para ninguém discordar. E, além disso, ficou provado que a branquinha sabe ler melhor do que muito palhaço político. Aproveitando o momento, olhando para todos, Lua se pôs a cantar uma musiquinha cuja letra estava impressa no verso de um rótulo de massa para pães de queijo. E dançava, a branquinha, rebolando o rabo e agitando as orelhas.

Lá lá lá lou
A Zambézia acabou!
Pra casa da Tia Cris
Eu vou! Eu vou! Eu vou!

Mosquitinhos vou levar
Pros penudos alimentar.
Pães de queijo vou comer
Até o papai aparecer!

Os penudos vão piar
Quando a ânfora quebrar
E os mosquitinhos libertar.
Depois vamos comer e dançar.

Lambidonas de montão
Na Tia Cris eu vou dar
E depois de tocar seu coração
Um sorriso eu vou ganhar.

E pra encerrar digo
A quem queria saber
Se eu sei escrever
Mamãe me ensinou
A digitar no computador
Obaaaaaaaaaaaaaaaaa.

Marly Spacachieri - dezembro de 2010