segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O MISTÉRIO DA LETRA ESSE




(pra Lulu)

Em meio ao silêncio .... zap zap zap .... o barulho de algo raspando o chão. Pipoca acertou as orelhas para o barulho ... zap zap zap zaaaaap. - O que era isso? Vinha lá da sala junto com um monte de zzzzzzzzz que era, naturalmente, o ronco do tio Chicão em seu tapete. Mas aquele zap zap zap insistia. Pipoca se escondeu debaixo do lençol porque morria de medo dos fantasmas. Pensa que cachorro não tem fantasmas povoando seus medos? Tem sim. Tem o sabonete sem cabeça, a pulga gigante, a coleira com enforcador, o homem da carrocinha com seu laço, a agulha da vacina, a criança do lado com mania de puxar os pelos ... e muuuitos mais. Porém, o tal do zap zap zap .... não era conhecido não! Pipoca resolveu que era hora de dormir e esquecer. Devia ser uma coceira qualquer ... de um pulguento .... apesar de que todas as pulgas foram expulsas com o tal produto cheiroso que a mamãe comprou. - Sei lá! Melhor dormir.

Fuc Fuc – O que era isso agora? Pipoca suspirou e resolveu investigar. Podia não ser a mais corajosa de toda a matilha, mas tinha um tiquinho de ousadia. Porém, pensando melhor resolveu pedir ajuda pra Jujuba. – Jujuuuuuuu, acorda!

- Mas o que você quer Pipoca? Tô com sono. Quero dormir para o tempo passar logo e logo chegar a hora de ganhar o leite de soja. Fique quieta.

- Você não tá ouvindo o fuc fuc e o zap zap? – perguntou Pipoca

- O que? Como um fuque fuque e um zapi zapi? – falou a Jujuba, no mesmo instante que um fuc e dois zap eram ouvidos por ambas.

- Ora bolas, disse Jujuba. É lá na sala. Vamos lá ver – ao mesmo tempo em que colocava seu boné de aba pra trás para ficar com cara de má. Se fosse um fantasma .... ela espantaria. Ah! Espantaria sim! RRRRRRR.

As duas saíram de cima da cama, bem devagar, pra não acordar a Azeitona porque com ela ... auuuuu ... seria o maior banzé. Chegando à sala viram a Lua com uma vassourinha nas patas dianteiras, apoiada nas trazeiras, vestindo um aventalzinho feito de papel de embrulho onde se lia “O melhor pão de queijo”,varrendo o chão e cantando:

Lá lá lá lá
Quando a mamãe acabar
De a Zambézia estudar
Na casa da tia Cris eu vou
E pão de queijo vou ganhar
Lá lá lá lá

- Luaaaaaa – chamou a Pipoca. – O que você está fazendo? É muito tarde e a gente tem que dormir!

- Nada disso, disse a branquinha. Vou continuar a faxina porque logo cedo vamos ter aulas. E sala de aula tem que ser limpíssima! Tem sim! Estou até colocando um cheirinho gostoso, falou mostrando o frasco de desodorante do papai.

- Que novidade é essa agora? – perguntou Jujuba.

- Novidade nenhuma. Teremos aulas todos os dias e recreios todos os dias! – exclamou a Lua.

- Pipoca, disse Jujuba – vou dormir porque dessa daí só sai esse tipo de idéias onde todos nós acabamos ou tomando banho ou indo ao veterinário. Melhor deixá-la aí. E nem ligou pro focinho triste da Lua.

- Mas ... ia dizendo a Pipoca quando notou que a Lua ficara triste. E se tem coisa ruim para um cachorro é ficar triste. – Lua, você quer montar uma escolinha? É isso? Mas quem vai ser o professor? O tio Chicão anda tão cansado que acaba dormindo no meio da aula ... Mamãe está com aquela Zambézia que não lhe solta do pé e o papai .... bem .... nem pára em pé de tão cansado.

- Nada disso, Pipoca. Euzinha quero ser a professora. Até consegui um lousa e um giz, disse a Lua mostrando um fundo de comedouro e um pedaço de lápis de sobrancelha que encontrara quando foi passear com o pai no jardim. – Dá pra gente brincar muito. E aprender. E comer pães de queijo nos recreios.

Pipoca pensou que não havia nada de errado na filhota querer ser professora de brincadeira. Afinal, de uns tempos para cá o apartamento tinha virado uma coisa complicada, com livros para todos os lados. E papai era professor ... e mamãe sempre ensinava alguma coisa pra alguém, além de ter se tornado mestre em história depois de falar tanto sobre a tal Zambézia! Claro que os filhotes sentiam vontade de serem professores! E, além disso, a Lua ficou muito triste com a pouca atenção da Jujuba. Pior coisa do mundo é esfriar a alegria de alguém.

- Claro que vamos brincar sim, Lua – falou a Pipoca. Vamos juntar todos e assistir a sua aula.

- Mesmo? Você jura? Vai ser assim? Auuuuuuuu – uivou a branquinha enquanto pegava sua vassourinha, ajeitava o avental e voltava a cantar:

- Lá lá lá lá
- Quando a mamãe acabar ....

Pipoca voltou para a cama e se enfiou debaixo do lençol. Quando pensou em dormir ouviu o chamado.

- Acorda cachorradaaaaaaaaa. Tá na hora da aulaaaaaaaa – gritava a Lua ao mesmo tempo em que pulava sobre a cama. Não havia o que fazer. Era melhor levantar e fazer o que ela queria. Lua quando quer .... tem! Chegando à sala encontraram o tapete no centro e uma folha de papel marcando cada lugar. Cada um foi se colocando onde quis porque a Lua não sabia escrever e por isso os lugares eram de quem chegava primeiro. Até os invisíveis vieram, todos, bocejando. Colocados em roda e aparece a branquinha carregando um saquinho cheio de algumas bolinhas.

- Bolinhas de queijo?farejou a Chica.

- Pode tirar seu focinho do meu lanche! – resmungou a Lua. – É pra hora do recreio. E agora vamos pra aula. Vou começar falando – quer dizer – latindo algumas perguntas e ....

- Xiiii, ela vai imitar o tio Chicão? – perguntou o Pingo

- Não vou imitar ninguém, seu amarelão! – gritou a Lua – Quero saber quem sabe o que eu vou perguntar! Quero só ver!
- Deixe a menina Lua começar sua aula – ponderou tio Chicão que ainda estava se acomodando no lugar que escolhera, bem perto do armário do televisor porque ali poderia se encostar e sentir menos dor. Ah! Como doía aquele reumatismo!!!

- Obrigada, tio. Vamos ver, falou a Lua, enquanto se colocava no centro da roda. – Quero saber o que é sabão.

- Ora, Lua, é aquele negócio que quando se coloca na água faz bolhas e esfrega-se no nosso pelo – falou a Azeitona.

- E sai aquela água suja e nojenta, disse Lulu, que depois de ter ficado transparente permanecia a mesma vaidosa de sempre.

- Nada disso. Nada disso. Sabão é uma dança. É sim!

- Mas que dança? Falou o Pingo. – Só se for quando a gente pisa e escorrega. Aí dá aquele arrasta pata dos brabos, vai uma pata pra cada lado e a gente se esborracha no chão.

- Nada disso! Nada disso! Sabão é uma dança do fandango no Rio Grande do Sul, de S.Paulo e de Pernambuco que foi popular no século XIX , disse a Lua, olhando para os lados e procurando a fisionomia espantada de cada focinhudo.

- Que quer dizer fandango? Perguntou a Chica

- Fandango, senhora Chica, é uma dança típica, falou tio Chicão.

- Mas não é o nome de um salgadinho que faz crec quando a gente morde e .... começou o Pingo

- Nada disso! Ninguém sabia! Zero pra todo mundo menos pra eu, gritou a Lua.

- Não, não, menina Lua. Não se pode deixar uma pergunta sem resposta. A senhora deve dizer o que é fandango, ponderou Tio Chicão.

- Tá certo, tá certo, mas deixem eu tomar uma água – disse a Lua enquanto entrava na biblioteca da mãe. Ninguém falou nada, mas lá não tem pote de água. Ela demorou um tantinho e ao sair tinha o riso dos vencedores no canto do focinho.

- Ateeeeençãooooo. Vou falar o que é fandango e só uma vez: é uma dança em pares conhecida em Espanha e Portugal desde o período Barroco caracterizada por movimentos vivos e agitados, com certo ar de exibicionismo, em ritmo de 3/4, muito frequentemente acompanhada de sapateado ou castanholas e seguindo um ciclo de acordes característico (lá menor, sol maior, fá maior, mi menor).

- Credo, exclamou o Teco que havia entrado e se instalado perto da Chica porque antes de ser invisível ele era namorado dela. Ah! Bons tempos!!!! Essa branquinha parece um foguetinho sem controle. Bonitinha e ai.... gritou depois de levar um apertão da Chica. Ela estava visível e atenta, isso sim! Invisível ou não ele que se comportasse! Esse negócio de se considerar protetor das cadelas tinha que acabar! Tinha!

- E vamos para a outra pergunta, latiu a Lua. Atenção! O que é sabongo.

- Sa ... o quê? Gritaram Azeitona, Pipoca e Jujuba ao mesmo tempo.

- Sabongo! Sa-bon-go! Falou a branquinha. SABONGOOOOOO.

- Um cachorro com bom faro? – arriscou a Tetê

- Cocada, respondeu a Chica.

- Como assim? Cocada? – falou o Teco

- É uma cocada feita com ponto mais brando, esclareceu Chica. Eu gosto muito, mas prefiro a cocada tradicional, aquela com fitas de coco .... e anote aí Teco, que logo faço aniversário e ...

- Como assim? Fitas de coco?

- Sim, Lua. Fitas de coco, disse a Chica.

- Certo. Ponto pra Chica ... falou a Lua ... franzindo a testa e querendo saber de onde a mini cadela havia visto isso. – Tem coco nessa farofa! – pensou mas não se atreveu a dizer. Imediatamente passou para outra questão. – Atenção todos e todas! – Quem é o saci-pererê?

- Esse é dos meus, exclamou o Kousky que viera acompanhando a Lulu porque mesmo transparente ela era uma cadela muito bonita e já havia tempos que ele suspirava por ela. Agora que eram transparentes podiam ficar juntos. Ah! O amor! – pensou o Pingo!

- Kousky, quer fazer o favor de se explicar? – falou a Azeitona. – Eu sei que o saci é um menino de uma perna só e preto como eu. Você é cachorro e de pelo branco. Como pode ser da mesma turma?

- Simples, garotona Zezé – falou o peludo sem perceber o franzir de focinho do Pingo. Como então aquele folgado chamava a Azeitona de Zezé? – Somos os dois bastante traquinas.

- Traquinas? Isso não é nome de biscoito proibido pra cachorros? – gritou a Pipoca.

- Traquinas, menina Pipoca, é o mesmo que peralta, levado ... – explicou tio Chicão.

- Vamos! Vamos! Até agora não se falou quem é o Saci Pererê – reclamou a Lua. – Tem que responder direitinho para ganhar os pontinhos. Ih! Rimou!

- Bom, - exclamou o Kousky – lá na minha casa tem livros e livros e eu aprendi com a minha mamãe ....

- A tia Cris! A tia Cris! AUUUUUUU – gritou a Lua, toda emocionada e ciumenta.

- Sim, a MINHA MÃE, latiu o Kousky, tem muitos livros e num deles li que o Saci é um menino levado ... mas não sei mais nada.

- Pode ser um parente meu porque é preto e falta uma perna, disse a Tata ajeitando-se entre a Lulu e o Kousky porque era a mais velha e guardiã dos “bons costumes”. Além do mais, como não tinha uma pata dianteira podia tudo.

- Tio Chicão? Cê sabe? – perguntou a Jujuba enquanto afiava seu ossinho limpa-dentes em formato de pingente.

- Bom, vamos lá. O Saci Pererê data do século XIX e é associado ao diabo e ao mesmo tempo nas festas religiosas, como a de Folias de Reis .... Trata-se de uma menino levado, como disse o garoto Kousky, mas com maus hábitos como o de fumar cachimbo ...

- Argh! Puá! Credo! – exclamações vindas de todos os lados.

- ... tem as mãos furadas ....

- Tadinho! Quem fez isso? – choramingou a Lua

- A lenda, Lua – respondeu o Pingo.

- .... usa uma espécie de gorro vermelho, a carapuça, que tem poderes mágicos. Só se captura um saci se se tirar a carapuça dele. A noite ele assovia e assusta os animais, faz nós nas crinas dos cavalos e emaranha as caudas das vacas, azedando seus leites. É ele quem queima os alimentos no fogão ....

- Tio Chicão! Se esse malvado aparecer aqui e quiser enroscar os pelos da Lulu, azedar o leite da caneca do Pingo ou queimar o meu pão de queijo .... dou-lhe uma mordida .... disse a Jujuba – e lenda ou não .... ele vai sair correndo.

- E aí Lua? Ponto pro tio Chicão?

- Sim! respondeu a branquinha decepcionada porque não estava se sobressaindo como queria. Mas todos estavam preocupados porque a cada tempo ela corria até a biblioteca da mãe e depois voltava toda contente. Algo acontecia. Pipoca foi espiar e chamou o Pingo,que era mais alto pra tentar descobrir o mistério, mas ...nadica de nada.

- Vamos a outra pergunta! Por que tem o dia de todos os santos? – questionou a Lua

- Mas o que cachorro entende de santo, Lua? – ponderou a Azeitona. – Não tem esse negócio de santo com a cachorrada.

- Como não? E o São Francisco que virou o tal encosto da mamãe e depois ficou grudado no papai? Todo mundo fala que esse São Chicão grudou neles? – falou o Pingo

- Nada disso, gente canina – latiu melodicamente a Lulu. O São Francisco foi um homem bom, que cuidava dos bichos e da natureza e quando ficou transparente passou a ser anjo da guarda dos bichos. A gente brinca muito com ele. Quando vocês ficarem transparentes vão conhecer o quintal dele. Tem cada flor maravilhosa com perfumes di-vi-nos.

- Voltemos ao tema! Ordem nessa bagunça! Exclamou a Lua. – Quero saber por que tem um dia para todos os santos. Quem sabe? Ninguém? Obaaaaa. Ponto pra mim.

- Para ganhar seu ponto, menina Lua, é preciso responder a sua pergunta, falou tio Chicão.

- Mas ....

- Sem mas, Lua. Responda – gritou Jujuba, toda nervosa e com o boné já virado pra trás, sintoma de que estava se animando pras mordidas.

- Mas .... choramingou a branquinha ... deve ser pra dar dia para todos os santos. É isso. É sim.

- Nada disso! Responda direito! Não nos enrole! – resmungou Jujuba e todos ouviram aquele rrrrrrr.

- Calma, menina Jujuba. A filhota está certa. É isso mesmo. Como todos os santos devem ter um dia comemorativo e se tem muito mais santo que dias, a igreja católica estabeleceu um dia para todos os santos. Dessa forma nenhum ficou de fora – explicou tio Chicão, olhando pra Lua e dando uma piscadela.

- Brrrrr – mostrando língua pra Jujuba – continuou a Lua. E continuando ... o que é sarna?

- Tenha dó, Lua. Sarna é palavra proibida aqui – falou o Pingo, já se coçando e morrendo de medo.

- Sarna é uma coceira, ué! – exclamou a Tila, que chegara e se instalara ao lado da Chica, lambendo a sua orelha como nos tempos em que não era transparente e se aninhava ao lado da amiga. Chica aproveitou e mudou de orelha pra aproveitar mais o carinho.

- Nada disso, falou a Lua. Sarna é uma dança.

- Mas isto é uma aula ou um baile? Perguntou a Lulu. Porque se for um baile vou querer pentear meus pelos, arrumar minha cauda, passar perfume atrás das orelhas e ....

- Sarna é uma dança do Rio Grande do Sul ...

- De novo os gaúchos? – exclamou a Azeitona

- ... onde os pares dançantes fingem que se coçam ...

- Coisa besta! Onde já se viu fingir que se coça! Coceira é uma desgraça e tem gente que inventa uma? Não acredito! Falou o Pingo.

- ... e eles se coçam como se estivessem com sarna – continuou a Lua

- Piorou! Sai dessa, falou o Pingo.

- Menino Pingo, pense que todas as manifestações culturais são oriundas ...

- Tio Chicão! Pare com isso! Que é isso de falar palavrões na minha aula? – reclamou a Lua.

- Que palavrão, menina Lua?

- Esse tal de oribunda ...

- Oriunda. Oriunda, sua surda, reclamou a Azeitona. Quer dizer “de origem”.

- Isso mesmo, menina Zezé. Parabéns. Mas continuando, todas as manifestações culturais tem uma origem e muitas vezes são de observar alguns hábitos do dia a dia. – explicou tio Chicão.
- A sarna? – falou o Pingo

- Não obrigatoriamente a sarna, mas as coceiras em geral. Lembrem-se que nos séculos passados, principalmente dos inícios do XX para trás, os hábitos de higiene eram precários e quase nada se sabia sobre as alergias. Por isso, como as pessoas confundiam as coceiras e a sarna era a mais comum, todas acabaram sendo chamadas assim. Por isso o nome da dança.

- Ponto pra ninguém, disse a Lua. E enquanto corria na biblioteca novamente, Pingo e Lulu se reuniram ao Kousky para discutirem esse estranho comportamento da filhota. Daí que Kousky percebeu que todas as questões envolviam palavras-chaves iniciadas com a letra S.

- É isso mesmo! Falou Lulu. Vamos ver se ela continua!

- Bom, peludos, vamos pra outra questão: o que sentinela?

- É a Tata esperando pra comer moscas, falou a Tuca, que chegou de mansinho como sempre. Depois que ficara transparente ficou muito mais silenciosa. – A Tata, antes de se transformar em transparente, ficava de sentinela esperando a mosca voar pra nhac.

- Creeeeedooooo. Arghhhhhh – saiu correndo a Lulu, pra tomar um grande gole de água para cães não transparentes e que molha os bigodes.

- Não sei porque tanto nojo, exclamou a Tetê.- Eu mesma, antes de ficar transparente, comi uma moscona ... e devolvi em seguida. Não estava no ponto para ser comida. Mal passada ... ou mal voada! Papai até fotografou.

- Precisava contar, Tuca? Precisava? Agora as moscas transparentes vão me azucrinar! –reclamou a Tata. Mas era verdade. Sempre que podia, antes de se transformar em transparente, Tata ficava a espreita esperando a moscar bobear e ... nhac.

- Vocês não sabem nada de nada, disse Lua ao sair da biblioteca mais uma vez. Sentinela é um velório, um lugar onde está o morto.

- Taí uma coisa que não entendo, disse a Pipoca. Por que os humanos fazem isso? Ficar olhando o corpo do morto? Não tem nada lá. Ele ficou transparente e está em outro lugar ....

- Mas os humanos não sabem disso. Eles acham que quem morreu ... morreu e está longe, num lugar pagando pecados ou sentado numa nuvem tocando a tal harpa... ponderou o Teco.

- Pobres humanos! Eles sofrem a toa! Olhem nós aqui, todos juntos. Até um penetra galã veio! – disse o Pingo olhando pro Kousky, que nem se importou. Ele queria mesmo era a atenção da Lulu.

- O certo é que sentinela pode ser sim um velório, principalmente na região nordeste do país, explicou tio Chicão.

- Eu sabia, disse a Jujuba, porque no carro do papai tem um cd do Milton Nascimento e o cachorro dele disse que ele gravou uma música com esse nome dizendo que o amigo estava morto. Quero esse ponto pra eu! Quero! Rrrrrrrr

- Bom, melhor dar esse ponto pra Jujuba porque .... disse a Lua, enquanto ia escapando pra dentro da biblioteca da mãe.
- Ela merece sim! – disseram todos os demais.

Aparecendo logo em seguida, Lua pergunta qual deles é filho-do-padre?

- Tá louca? Desde quando cachorro pode ter pai padre? Imagine a batina? – disse a Tuca.

- E como ele ia ajoelhar? – perguntou a Lulu.

- E rezar o terço? E ministrar as hóstias? – disse a Tila

- Hóstia de queijo? Hummmmm – lambeu os beiços a Lua. Ninguém sabe?

- Bom, menina Lua, eu acho que todos somos filho-do-padre aqui nesta casa – disse Tio Chicão.

- Alto lá! Alto lá! – latiu o Teco. – Não tem padre nenhum na minha cruza!

- Meninos e meninas, ser filho-do-padre quer dizer “alguém com muita sorte”. É isso.

- Ahhhhh – foi uma exclamação coletiva. – Mas isso inclui cachorros?, perguntou a Tuca.

- Claro que sim, esclareceu tio Chicão.

- Ponto pro tio Chicão, disse a Lua. – Agora eu quero saber o que é “ser o cão do segundo livro”?

- Nem imagino, disse o Pingo, Quer dizer que tem cão do primeiro livro?

- Que livro é esse, menina Lua? – perguntou tio Chicão.

- Espere eu tomar uma água e .... – disse a Lua enquanto tentava se afastar.

- Não tem água na biblioteca da mamãe, disse a Chica. - Pode tomar daqui mesmo.

- Não. Quero ir à biblioteca pra me inspirar, pensar, refletir .... falou a Lua

- Sem essa, girl! – disse o Teco. – Maninha terá que sair dessa sem ir para a biblio da mamãe.

- Bom, vocês insistem! Vamos ver. Se me lembro bem dos meus fichamentos ....

E todos ficaram impressionados como a branquinha ficou séria.

- .... nos anos de 1920 e 1930 os livros adotados para as escolas de alfabetização infantil, e que eram chamadas de primário ou grupo escolar, eram de autoria de Felisberto de Carvalho e tinham os títulos: Primeiro Livro de Leitura E Segundo Livro de Leitura. E dentro do segundo tinha desenhos do diabo e que era também chamado de cão.

- Que absurdo! Onde já se viu colocar aquele ser do mal como um de nós – exclamou o Pingo.

- Com o tempo, esses desenhos – do cão do segundo livro – passaram a ser sinônimo de feio, de horrível, mas, também de alguém danado de bom, bravo e valente, encerrou a Lua.

- E eu pergunto ... pra que serve isso? – questionou a Jujuba
- Como assim? Como pra que serve? – respondeu a Lua. – Trata-se de sabedoria ...

- Isso mesmo, menina Lua – confirmou tio Chicão.

- Ah! E ficar falando do mal, do diabo para cães mais novos é bom? Só pra assustar? É isso? – reclamou a Jujuba.

- Não, garota Jujuba. Discutir qualquer assunto é sempre muito saudável. – arrematou tio Chicão. – Traz novas idéias, nos faz pensar sobre outras coisas ou mesmo sobre as mais antigas crenças sob novos olhares. A discussão é sempre boa!

- Nada disso! Odeio quando o papai discute com a mamãe – reclamou o Pingo

- Não é esse tipo de discussão, jovem Pingo, esclareceu tio Chicão. – Estamos falando de diálogo, de conversa.

- E eu? Ninguém vai falar nada sobre o que expliquei? – resmungou a Lua.

- Claro que sim, Lua. Mas nos diga, de onde veio tanta informação? – falou a Pipoca. – Dos pães de queijo é que não foram.

- Bom, eu podia falar pra você que sabia disso, que tinha estudado tudo mas ... seria mentira. Eu peguei uma folha de trabalho da mamãe e do tal glossário que ela está montando ... e fui tirando essas coisas. Mas só tinha as palavras começadas com a letra S.

- Arrá! – resmungou a Jujuba. – Bem que eu desconfiava que ela estava mesmo se exibindo ... querendo aparecer ....

- Nada disso! gritou o Pingo quando viu a cara de choro da Lua. – Ela fez o melhor que pode. E olha, Lua, foi muito bacana porque estamos todos aqui reunidos, inclusive os transparentes. E felizes por pertencermos à mesma matilha.

- E aí, cara! Tem euzinho aqui – reclamou o Kousky.

- Mas você é da Tia Cris e por isso é nosso também, falou a Tata.

- Bom ... eu adorei ficar aqui com todos vocês, principalmente com as meninas, disse Kousky espichando os olhos e focinho pra Lulu, Tetê, Tuca, Tila e Tata. – Func func, farejou o branquinho. Mas sem ousar piscar para a Chica! Não! O Teco não perdoaria! Nhac.

- E tem mais – continuou Pingo. – A Lua trabalhou a noite toda pra arrumar a sala, colocar perfumes e marcar os lugares. Depois ficou convocando todos os cachorros da matilha e tudo isso pra homenagear a Lulu que ficou transparente no dia 16 passado. E ela quase nem teve tempo de se preparar. Por isso a Lua montou esta festinha. Eu ouvi tudo da minha cama.

- É mesmo Lua? Você fez tudo isso pra mim? – perguntou Lulu

- É sim. Mamãe e papai ficaram muito tristes porque eles não vêem mais os transparentes. E eu queria reunir todos aqui pra que juntos com a Lulu pensássemos numa forma de ajudar os papais nessa hora triste – falou seriamente a branquinha. Até inventei essa historinha de aula, de escola .... e nem sei fazer isso direito ... acho que me atrapalhei toda ....
- Menina Lua, você já fez o que era preciso, - explicou tio Chicão. – Quando você cuidou do lugar, perfumou a sala e chamou todo mundo para ser feliz criou uma alegria imensa nos corações e essa mesma alegria já tomou conta da casa e dos nossos pais. E foi uma professorinha das melhores!

- É isso mesmo, Lua, disse o Bim, que tinha entrado sem fazer um barulho e assistia a tudo. Trazia seu crachá da USP e um convite pra Pipoca posar para o seu blog: BigBlogdoBim. O sucesso!!! Além disso, ele já era da matilha!!! – E olhe que eu conheço tantos professores ... e você é melhor que a maioria deles!

- Obaaaaaa, gritou a branquinha. – Então vamos brincar e comer pães de queijo ...

- Menina Lua! Pães de queijo não pode! – falou Tio Chicão.

- Mas tio Chicão!!!! Choramingou a Lua olhando pro saquinho com as bolinhas de queijo.

- Calma Lua. Olhe, eu trouxe um pacotão de pães de queijo celestes, feitos com o mais puro leite de vacas do céu, disse a Lulu, próprios para cachorros.

- Obaaaaaaaaa. Lulu, você continua lindíssima – gritou a branquinha, lascando uma lambidona no focinho da menina.

- É! Sim! Mas nada de sujar meu pelo. Agora que estou transparente ... posso andar por aí ... e sabe como é, né! Sempre linda – falou a Lulu ajeitando os bigodes.

Ao longe, tio Chicão, mastigando um pão de queijo celestial, sentia-se feliz por ter tido a chance de pertencer a essa matilha especial. A menina Lua era uma alegria só. Humanos perdem tempo com coisas bobas enquanto que a felicidade está a um palmo de seus focinhos ... ops .... de seus narizes. Nesse momento todos pularam ao seu lado para a fotografia. Flash!


Marly Spacachieri
24 de outubro de 2010