domingo, 20 de fevereiro de 2011

PÃO DE QUEIJO FILOSÓFICO DO TIO CHICÃO - O INÍCIO DE TUDO




Uma saudade do Chester da Tia Eneida.

Chegou o Natal e os presentes vieram com ele. A matilha delirou com os pacotes: a Chica ganhou uma almofada fofa, a Pipoca um lindo pote vermelho, o Pingo um novo edredom, a Jujuba uma coleira de pedrinhas coloridas, a Azeitona uma caixa de dormir, a Lua ganhou um colarzinho com pingente em formato de pão de queijo, mas que brilha. Tio Chicão ganhou um novo tapete felpudo. Os transparentes ganharam coisas leves e perfumadas. Todos usaram seus presentes imediatamente e nem deram atenção pros fogos que os humanos ainda insistem em soltar. Bom, para ser verdadeira com esta narrativa tenho que considerar que a Lua questionou acerca desses fogos de artifício. E quis saber o que quer dizer “artifício”. Pipoca tentou explicar mas ...
- Bom, artifício é algo que .... bem .... não sei explicar, disse a Pipoca.
- Pois é, - retrucou a branquinha – ninguém gosta de minhas aulinhas mas ... saber mesmo .... ninguém!
- Alto lá! – disse o Pingo. – Tio Chicão sempre sabe de tudo.
- Não é bem assim, menino Pingo. Ninguém sabe tudo, ponderou Tio Chicão. - Nessa dúvida sobre a palavra artifício, por exemplo, trata-se de algo que pode ser interpretado de diferentes maneiras. Pode ser uma forma artificial, fingida, de se produzir os fogos. Mas pode ser entendida também como uma habilidade em manejar esses mesmos fogos.
- Quer dizer que é uma maneira malandrinha de enganar os olhos da gente? – perguntou a Pipoca.
- De certa forma é sim! Porém, serve para demonstrar comemorações – respondeu tio Chicão. - Mas a menina Lua tem razão. Estou percebendo que o menino e as meninas carecem de maiores conhecimentos acerca das coisas.
- Ah! Não mesmo! – reclamou a Jujuba com sua coleira de pedrinhas. – Vamos combinar que todo cachorro nasce sabendo tudo o que precisa saber!
- Não! Não! Menina Jujuba se engana. O saber sempre é necessário, em todas as ocasiões tem serventia. – falou Tio Chicão.
- Mas para que saber quem descobriu o Brasil ou qual o nome do presidente do país? – questionou o Pingo. – Cachorro não vota!
- Menino Pingo, vamos conversar sobre isso. Não confunda saber responder sobre fatos e nomes com conhecimentos. É muito mais importante saber o porquê se descobriu as terras que hoje se referem ao Brasil do que saber o nome dos primeiros visitantes. Saber o partido político do presidente do país pode ajudar a entender melhor o governo que se está tendo, as coligações políticas, os próximos fatos e coisas assim – falou Tio Chicão.
- Mas pra um cachorro? É preciso saber tudo isso para que? perguntou a Pipoca. – Eu gostaria mesmo é de conhecer o cachorro do presidente! Quer dizer ... da presidenta ... se é que ela tem um, e saber qual é a opinião da dona dele sobre abandonar animais pelas ruas.
- Do jeito que as coisas andam por aqui, logo vamos ter que saber coisas de Veterinária – reclamou a Tetê. Justamente ela que sempre fora a enfermeira de todos! Preocupante!
-Pois é – exclamou a Lua. – E tem o tal horário de verão, o plebiscito para mudar o nome do município de Embu das Artes, o paredão do BBB, a fila do seguro-desemprego que está cada vez mais comprida, a Zambézia, os juros do cheque especial, a campanha salarial dos funcionários da USP ...
- CHEGA, LUA – exclamaram todos os cães ao mesmo tempo, fazendo com que a branquinha se escondesse atrás do armário.
Tio Chicão ponderou que realmente essas eram questões para cabeças de humanos, mas os cachorros precisavam também ter com o que se preocupar, além dos ossos, dos passeios, dos enfeites e das comidas. Humanos não acreditam que os animais podem pensar acerca das coisas que eles, humanos, deliberam. Ingênuos, esses humanos! Porém, ainda era cedo e o sono de antes do almoço chegou de mansinho pegando todas as patas e focinhos. Tio Chicão sonhou com um livro falante.
- Acorde, Senhor Chicão! Sou eu, o livro falante de filosofia.
- Mas o que acontece agora? – falou um sonolento Tio Chicão. – Quem fala comigo?
- Sou eu, senhor. O livro que lhe dará todas as perguntas e criará ambiente para as respostas, disse a voz rouca de um volume encadernado em capa dura com gravações em dourado e fitinha vermelha para marcar as páginas. Bem antigo mesmo! Tinha até uma traça mumificada presa na lombada. O ar ficou com cheiro de naftalina.
- Mas que respostas, caro livro? Não tenho nada pra perguntar! – ponderou Tio Chicão.
- Como então não foi o senhor quem reclamou que os cachorros estão muito preguiçosos, não estão se empenhando em discussões filosóficas e ...
- Nada disso! Quem foi que falou em preguiça e filosofia? Está maluco? – reclamou Tio Chicão. Os meninos estão precisando se ocupar de algumas outras coisas que não sejam apenas seus brinquedos porque acabam sempre se mordendo, rosnando e criando cizânias. E isso não é auspicioso. A Jujuba sempre sai machucada. Mas daí querer um debate filosófico canino ... não mesmo! A menina Lua já tem idéias demais! Não invente coisas! Ela deixa a Tia Cris preocupadíssima.
- Bom, eu pensei em lhe ajudar porque sou um livro de filosofia, mas ... em sendo assim ... melhor que seja outro. Tenha um bom sonho, senhor! – e saiu do sono do Tio Chicão da mesma maneira que havia entrado: do nada!
Nem mesmo havia ressonado um tantinho e outro livro entrou no sonho do Tio Chicão. Agora era um livro bem jovem, com aspecto moderno – digamos ... arrojado. Capa colorida e cheia de desenho, encadernação simples. Se tivesse como ... mascaria um chicletes.
- Olá, velho Chico – disse o livro jovem.
- Como é que é? - “Velho Chico”? - Como assim? – reclamou Tio Chicão, ainda zonzo pelo sono. – Só me faltava isso! Será que se trata de alucinação? Eu bem que desconfiei dos remédios novos que estou tomando! Aquela história de arejamento cerebral não está muito bem explicada! A menina Tetê tem razão em se preocupar com os avanços da Medicina Veterinária.
- Tá certo! Tá certo! É Tio Chicão, não é? – falou o livro moderninho. – É que o classicão me mandou falar com o senhor, - explicou.
- Quem é o classicão? Eu não conheço nenhum cachorro com esse nome. – disse Tio Chicão.
- É um livro, brother! Livro clássico, sacou?
- Santos ossos sagrados! Exclamou Tio Chicão. – O que mais me falta acontecer?
- O seguinte, cara: vou deixar algumas das minhas folhas aí pro tio ler e depois usar pra ajudar a matilha a pensar. Sou um livro jovem, moderno, mas nem por isso fujo do objetivo de instruir, alegrar e ajudar,- falou o exemplar colorido. E sumiu.
Tio Chicão caiu num sono profundo onde muitas folhas escritas passaram diante de seus olhos e tomaram formas e cores. Tudo isso entrou pelo seu cérebro – agora arejado – e começou a fazer sentido. Era mesmo uma forma estupenda de ajudar aos peludos a se portarem melhor, principalmente enquanto os pais humanos não estavam. Ao acordar já tinha delineado uma forma de conduzir esse novo aprendizado. Estava aberta a temporada das histórias para a matilha. Esperou que todos acordassem e viessem para a sala. Não demorou muito e todos estavam em volta do Tio Chicão.
- Menino e meninas, vamos ter reuniões diárias para conversar ... – começou o Tio Chicão.
- Lá vem palavrório, resmungou a Jujuba.
- Calada! – reclamou a Tila – Quando o Tio Chicão late a gente nem rosna baixinho!
- ... e quero que todos vocês compareçam e participem!
- Mas Tio Chicão, a gente não quer mais ir pra escola. A Lua já deu aulas demais e ... disse o Pingo.
- Não é escola, menino Pingo. É apenas um contar histórias, respondeu Tio Chicão. – E vamos ver o que cada um acha, se gosta, se acha errada, chata, ou outra opinião ...
- E vamos falar de pães de queijo? Perguntou a Lua.
- Menina Lua, creio que não há histórias acerca de pães de queijo, mas poderemos comer algumas comidas caninas no intervalo entre as conversas, disse Tio Chicão.
- Topo! Fechado! – gritou Azeitona.
- Todos aceitam? – perguntou Tio Chicão.
E um coro de “sim” foi dito, mesmo que alguns mais devagar que outros. A Lua insistiu em proclamar que estava fundado o Pão de Queijo Filosófico do Tio Chicão para caninos de todas as idades. Tio Chicão complementou que seria um momento onde, desde então, ele apresentaria uma historinha garimpada na literatura mundial, de todos os tempos, e que levaria pra cada focinho dar seus palpites.
- Obaaaaaaa – gritou a Lua, já arranjando sua lancheira pra colocar seus pães de queijo. – Vou chamar todos, inclusive os invisíveis. Eles devem ver o que a gente não consegue e podem ajudar. – Ah! E tem cachorro novo na matilha: é a Sasha, da tia Paquinha. Ela é uma poodle na pata virada, latidora das boas e que dorme como o Pingo, de barriga pra cima. Vou pedir pra ela trazer os pães de queijo da mãe dela. Obaaaaaaaa.
- Muito bem pensado, menina Lua! Muito bem pensado! ponderou Tio Chicão.
E a alegria da branquinha foi tomando conta de todos. Em breve a sala transformou-se num alvoroço só, todos procurando suas almofadas, arranjando seus lanchinhos e puxando as vasilhas com água para perto da turma. A roda foi ficando grande e Tio Chicão fez a chamada:
- Azeitona
- Bim
- Chiquinha
- Jujuba
- Kousky
- Lua
- Lulu
- Pingo
- Pipoca
- Sasha
- Tata
- Teco
- Tetê
- Tila
- Tuca
Um sonoro coro de latidos representou o “presente”. Quatorze rabinhos abanando, alguns resmungos e rosnadinhos e em pouco tempo estava feita a roda do Pão de Queijo Filosófico do Tio Chicão.
- Pois bem, meninos e meninas! Vamos começar nossa reunião de hoje. Vou começar contando uma fábula ...
- Mas o que é fálula, tio Chicão? – perguntou a Lua.
- Não é fálula, sua tonta – disse a Azeitona. – É fábula!
- E o que é fábula? Retrucou a branquinha.
- Sei lá! – resmungou Azeitona.
- Pois é! Euzinha, quando não sei ... pergunto e não me meto a besta como certas cadelas magrelas e pernudas e ....
- Quietas, meninas! – falou tio Chicão. – Nada de brigas! Fábula é uma pequena história com objetivo de mostrar um comportamento de onde se pode tirar exemplos do que se deve e do que não se deve fazer.
- Coisa besta! – reclamou a Jujuba.
- Contudo, continuou tio Chicão sem se importar com os resmungos da pretinha ranzinza – a característica maior é que essas histórias são, em sua maioria, protagonizadas por animais.
- O que é pro-ta-go-ni-za-da? –perguntou Pingo espichando o focinho pra Sacha e querendo parecer um galã. Ela tinha pelos enroladíssimos. - Ai e ai, suspirou o amarelão.
- Vivida, – explicou o Bim.
- Isso mesmo, menino Bim – falou tio Chicão. – As fábulas são vividas por animais que têm comportamento de humanos. É uma forma encontrada de mostrar as coisas boas e as coisas más que os humanos fazem.
- E usam os bichos pra isso? – reclamou a Tuca. – Gente é coisa complicada mesmo!
- É sim, menina Tuca, mas vale a pena começarmos a historinha. Vocês vão gostar.
- E depois podemos comer nossos lanches, né? – gritou a Lua.
- Não sei como ela não engorda! - exclamou a Pipoca.
- Mais tarde. Mais tarde – suspirou tio Chicão. Aquela branquinha só pensava em comer! Precisava mesmo de distração porque caso contrário iria se transformar numa gorda almofada canina! - Vamos começar com as fábulas do Esopo.
- Alto lá! Quem é esse cara? – perguntou a Tila.
- É um lendário autor grego que teria vivido na Antiguidade e a quem se dá a paternidade das fábulas – explicou Kousky.
-Noooossa. De onde ele tira isso tudo, exclamou o Pingo. – Nem tem uma cartola de mágico!
-Dos livros da tia Cris, ora bolas – falou a Tata.
- Mas o que quer dizer pa-ter-ni-da-de? Perguntou o Teco.
- É aquele que gerou. O pai, – falou a Sasha, bem baixinho porque ainda estava tímida. Na casa dela também havia livros, ora!
- Ai e ai – suspirou o Pingo para a poodle. Aquele focinho era lindíssimo mesmo.
- Muito bem menina Sasha – falou tio Chicão. – Isso mesmo! Trata-se do inventor das fábulas. Mas isso pode ser apenas mais uma das infinitas explicações dadas pelos homens para as coisas que ele não sabe de onde vieram. Também não importa quem inventou as fábulas, pois o importante é que elas chegaram até os nossos dias e nos ajudam a entender o bem e o mal.
- Então vamos a elas, tio Chicão – gritou a Lua.
- Pois bem. Eu vou contar a historinha e depois que eu acabar vocês falam o que acharam, certo?
- Certo – latiu ao mesmo tempo aquela matilha.
Mas ... sempre tem um mas!!! nesse momento ouviram a chave sendo rodada na fechadura. Era o papai que chegava pra por ordem na bagunça que eles fizeram durante a manhã toda. E também era a hora do almoço. Tio Chicão achou melhor começar a sua exposição depois de todos comerem. E quando cachorro come ... dorme! Melhor esperar para depois da soneca. Ele mesmo estava cansado. A última coisa que fez foi marcar a página de onde tirara a primeira fábula: Os ratos e o gato. – Xi! Acho que a menina Lua não vai gostar! Ela não tem simpatias por ratos porque eles comem os queijos que fazem os pães. - Mas ... fábulas são fábulas, pensou tio Chicão antes de colocar seu focinhão na vasilha de ração e comer tudo. Pouco depois era uma soneca coletiva. Melhor esperar, não é?
MARLY SPACACHIERI
fev/2011