domingo, 27 de março de 2011

O SAFARI DO CÃO VELHO - Mais Pão de Queijo Filosófico



A experiência da última conversa com a matilha sobre a fábula dos ratos e do gato rendeu muitos frutos. Porém, tio Chicão não estava satisfeito porque além de uma chuva de idéias para resolver o impasse dos ratinhos, os cachorros rosnaram uns para os outros num entrevero que buscava ganhar no latido. Isso não é bom! Não mesmo. Eles precisam aprender que a vida real é feita de acordos, parcerias e ajustes pessoais, e que não basta apenas falar isso. É preciso colocar em prática. Por esse motivo Tio Chicão estava demorando em montar mais uma rodada de fábulas. Ficou na esperança de que aquele livro aloprado e cheio de ginga voltasse nos seus sonhos mas ... não! Não houve jeito. Pata após pata lá se foi o cachorro grandão rumo à biblioteca da mãe. Não demorou muito e encontrou um livro que lhe chamou a atenção. Mordendo a lombada com cuidado, retirou da estante e o levou ao seu tapete de descanso. Tudo isso muito silenciosamente porque se a menina Lua percebesse... adeus sossego! O velho pastor alemão sentou-se vagarosamente porque suas dores reumáticas atacavam cada dia mais fortemente. Abriu o livro a esmo e deparou-se com uma historinha muito interessante. Leu-a com cuidado, fechou o livro e se pôs a pensar em como poderia conduzir essa nova reunião com a matilha. E ficou parado... pensando ... enquanto a Lua se apercebendo disso foi sorrateiramente por detrás e sussurrou no ouvido dele:

- Tiooooooo. O que é que você está lendooooooooo? Hein? Hein? Posso ver? Posso? Tem figurinhas? Tem pão de queijo? Tem? Hein? ...

- Calma, menina Lua. Vamos com calma. Estou pensando na fábula que acabei de ler e ....

- Pronto. Lá foi ela de novo chamar a encrenca!!! – exclamou a Jujuba, como sempre nervosa.

- Menina Jujuba, falou calmamente Tio Chicão. – A menina Lua apenas tem curiosidades e isso é muito bom para o aprendizado. Só quem pergunta o que não entende aprende de verdade.

- Ser enxerida agora é ser curiosa? – reclamou Jujuba ajeitando o seu boné de aba desenhada com o logotipo dos Taboão Bad Dog’s. Sinistro, como dizia o Pingo.

- Pelos deuses do osso sagrado! Vamos respeitar a fala do Tio Chicão? Vamos? – exclamou a Tuca. – Ele só quer nos ajudar! Sosseguem seus rabos e baixem seus pelos.

- Certo, menina Tuca. Pretendo apenas criar em vocês condições de melhor aproveitarem seus tempos livres.

- Eu sei o que fazer com o meu tempo livre – exclamou a Lua. – Comer pão de queijo e brincar de claclá, além de fazer visitas e mais visitas na casa da Tia Cris e lá encontrar a Tia Eneida. É sim!!! Agora mesmo estou vendo como posso ir visitar o Bim que está acamado debaixo da mesa do computador. Acho que vou levar uns pães de queijo pra comer enquanto trocamos idéias. É sim!

- A diversão faz parte da vida, menina Lua, mas não é tudo. Precisamos usar nosso tempo para tudo. E uma das coisas mais importantes e divertidas da vida é nos colocarmos no lugar de algum outro ser e tentar responder as questões que a vida a ele propôs.

- Como assim? – perguntou o Teco. – Já não basta ter que alisar as minhas cicatrizes vou ter que procurar as dos outros cães? Eu, hein! Nem pensar!!!

- É só de mentirinha, seu tonto – exclamou a Tata. – Nada te afetará fisicamente. Vamos fazer de conta que somos o personagem que o Tio Chicão vai nos apresentar com sua fábula. Estou certa, tio?

- Vixessanta! De onde ela tira tudo isso? – falou baixinho a Tetê.

- Das três patas que ela tem. Fica pululando por aí, pula mais alto que nós e com isso vê mais coisas. Só pode ser isso! – respondeu a Chica. – Ela sempre foi a mais esperta entre todos.

- Tá certo, falou a Tetê. E pensando bem ... era verdade mesmo. A Tata tinha apenas três patas e era a mais agitada de toda a matilha. Pulava o tempo todo, ganhava carinho e aproveitava para saber tudo sobre tudo. Além do mais, foi a primeira a ficar transparente. Tinha experiência de sobra sobre fuçar aqui e ali.

- Todos entenderam? – perguntou Tio Chicão. Cada um de vocês vai pensar como o cachorro da minha fábula. Certo?

- Sim! – responderam todos.

- Vamos lá. Era uma vez uma velhinha ...

- Por que será que sempre tem um velho ou uma velha nas histórias? – perguntou a Jujuba. – Uma coisa qualquer com a terceira idade? Que fixação!

- Sabedoria, sua boboca! Ser velho representa ser experiente, - respondeu a Tila.

- Certo, menina Tila. O velho pode ser bom ou mau, mas sempre viveu mais experiências que o mais jovem.É nisso que nos apoiamos para contar suas histórias. Voltemos a nossa fábula. Era uma vez uma velhinha que partiu para um safari na África ...

- Ah não! África não! Nada de Zambézia aqui! – gritaram todos ao mesmo tempo. Sintomático não?

- Não era na Zambézia! Era no coração da África, nos locais próprios para safari. Certo? – esclareceu Tio Chicão. – E ela levou seu velho cachorro com ela ...

- Pode parar! Pode parar mesmo! Nada disso! Safari já é uma coisa detestável porque caça e mata bichos. Agora, querer levar um cachorro lá, ainda por cima idoso???? Nem pensar, gritou a Lua. - Nenhum Tio Chicão pode ir pra África fazer safari. É perigoso. Não mesmo!

- Menina Lua, muito obrigado pela consideração, mas devo dizer que esse safari apenas faz parte da fábula. Nada mais! Não se leva cachorro de estimação para safaris. –explicou Tio Chicão. E a Lua parecia enlouquecida, com os pelos todos arrepiados e rabo abanando sem parar.

- Mas afinal ... o que é um safari? – perguntou a Azeitona.

- Noooosssaaaaa. Você não sabe o que é um safari? Logo você que tem os tais ancestrais africanos? Meus deuses protetores dos baldes de leite! – gritou a Lua.

- Não sei! Respondeu a Azeitona.

- Trata-se de uma expedição de caça feita principalmente na selva africana– explicou a Sasha, arrancando suspiros do Pingo.

- Como ela é branquinha e sabida! – exclamou o amareludo.

- Certo, menina Sasha. É isso mesmo. Mas o nosso safari aqui não aconteceu de verdade. É apenas uma suposição. Nada mais! Certo?

- Tá certo, Tio. Vamos em frente! – falou a Pipoca enquanto acalmava a Lua passando a pata em sua cabeça. Ela sabia como relaxar a branquinha.

- Pois bem. A velha senhora levou seu cachorro para um safari na África e ele foi caçar borboletas ...

- Agora isso! Cachorro caçando borboletas a troco de quê, santos deuses – exclamou a Jujuba.

- ... e se perdeu – falou Tio Chicão que ignorou o comentário da pretinha crítica. – De repente se viu no meio da selva onde viu um jovem leopardo caminhando em sua direção.

- Danou-se! – gritou o Teco – Leopardo é um gatão terrível.

- Certo, menino Teco. – Mas o nosso amigo canino olhou ao redor e viu muitos ossos espalhados. Já havia acontecido uma chacina ali.

- Ai e ai – exclamou uma Lulu toda apavorada. – Imagine o estado do pelo do pobre coitado que foi comido! Espalhado pelo chão. E que chão era aquele? Todo sujo. E fedia, com certeza! Argh!

- Lulu! – exclamou a Tetê – Acalme-se e ouça.

- Pois bem. O nosso amigo canino ao ver os ossos no chão e o leopardo de aproximando, fez de conta que não tinha medo, sentou-se no meio deles e sem dar atenção a fera que se aproximava começou a roer os ossos. E o fez com vontade. O leopardo ficou olhando, mas não desistiu do bote. No momento em que se preparava para atacar, o cão idoso suspirou e disse:
- Este leopardo estava delicioso. Será que têm outros por aí? – falando mais alto.

O leopardo suspendeu o ataque e saiu de fininho. A cena foi assistida por um macaquinho que pensando em tirar vantagens para si resolveu contar a verdade ao leopardo.

- Senhor leopardo – falou o macaco. – Em troca de sua proteção posso lhe contar a verdade sobre o cachorro que viu agora.

O leopardo se interessou ...

- Macaquinho dos infernos! – exclamou a Lua. – Onde já se viu ser um falso assim? Eu ....

- Menina Lua, disse Tio Chicão. – Deixe suas considerações para o fim da fábula!

- Sim senhor. Sim senhor! Mas o-de-io gente falsa! Bicho falso, nem se fala! – resmungou a branquinha. Macaquinho notinha de três reais, de pelo sintético e que colhe banana de plástico. HUNF!

Tio Chicão continuou.
- O leopardo se interessou pelas falas do macaco. Ao saber que o cachorro fingira ter abatido um leopardo, voltou correndo com o macaco nas costas para mostrar a ele como era forte e destemido. Ao longe o cachorro idoso percebeu a reviravolta na situação e imediatamente colocou-se de costas para o atacante que vinha ao seu encalço. Ao sentir sua presença ... porque cachorro tem faro apurado, ainda que seja idoso (e Tio Chicão falava por si)... desatou a pensar alto: - Cadê aquele macaco safado? – Será que demora em buscar outro leopardo para mim? O leopardo, ao ouvir isso, saiu correndo deixando o macaco cair ao chão.

- E então, crianças caninas? O que cada um tem a me dizer? – inqueriu Tio Chicão.

- Macaco besta! – exclamou a Lua. – Macaco que merecia cair numa casca de banana e se esborrachar no chão!

- Bom ... começou a falar a Tuca. – Essa história mostra que os cachorros são espertos.

- Mas não apenas isso, - exclamou a Chica.

- E o que a senhora Chica viu? Perguntou Tio Chicão.

- Que o cachorro sabia agir com sabedoria, colocando sua experiência a frente do seu medo, respondeu a idosa cadelinha.

- Nooosssaaaa, Chica – exclamou a Pipoca. – Que coisa bonita você falou!

- E tem mais, falou a Tata. – Depois de muito viver, um cachorro adquire experiências, da mesma forma que os humanos idosos também o fazem.

- É mesmo! -exclamou a Tetê. – A gente vai ficando mais esperta a cada ano que passa. Perde a agilidade, às vezes até mesmo a visão e a audição, mas a experiência fica sempre. Por isso o cachorro idoso é tão importante na vida do mundo.

- Ah! Mas todos os idosos são importantes, tia Tetê – exclamou a Lua. – O que seria de nós, filhotes, sem os ensinamentos dos mais velhos? Íamos cair nas falsidades dos macacos!

- Alto lá! Isso é que não! – reclamou a Jujuba. – Euzinha taco mordidas no macaco safado ...

- Calma menina Jujuba – falou Tio Chicão, sem conseguir conter o riso. Era realmente hilário ver aquela cadelinha tão pequena, rosnando e mostrando metade da bochecha levantada, e olhando furiosa por debaixo do boné com a aba virada. E ela mordia mesmo.

- Mamãe disse que ouviu a monja dela dizer que quando um jovem morre, morre um livro; quando morre um velho, morre uma biblioteca. – falou o Pingo. – É isso?

- Certíssimo, menino Pingo. – Alguém quer acrescentar alguma coisa?

- Sim senhor, disse a Sasha. – A minha mamãe me ensinou a ser respeitosa com os mais velhos, inclusive os papagaios ...

- Mas até com os macacos X9? – falou o Kousky.

- Que diabos é esse chisnove? – perguntou a Lua

- Um delator, Lua – explicou a Azeitona.

- Todos os mais velhos merecem respeito, falou Tio Chicão. Mas, devo acrescentar que os seres fazem seus caminhos e recebem ao final deles o que plantaram. Se forem bons, deverão ser respeitados; se forem maus ...

- MORDIDAS NELES! – gritou a Jujuba.

- .... receberão, da maioria dos demais, apenas a exclusão e desprezo.

- Triste, não? – falou a Lua. – Por isso é que eu sou boazinha! Adoro todo mundo e todo mundo me adora, não é? Não é? Hein? Hein?

Era melhor concordar porque ela já estava armando o maior berreiro.

- SIM. É SIM! – todos exclamaram. Mas era verdade mesmo. Aquela branquinha gostava de todos. Não importava se recebia um rosnado. Se afastava e esperava para mais tarde se aproximar e tentar ganhar um carinho. Se não conseguia, virava de barriga pra cima e fazia gracinhas até conseguir atenção. Sempre cedia seu claclá para os outros brincarem. Limpava as orelhas da Pipoca e lambia o focinho da Chica numa demonstração de grande carinho.

Tio Chicão percebeu que todos entenderam a fábula. O mais importante era que essa matilha compreendeu que a experiência é mais importante que a artimanha, comparando o leopardo jovem com o cachorro velho. E que de nada vale ser esperto se não se tem caráter, como é o caso do macaco da história. - E também, ponderou o velho pastor alemão, que os humanos são realmente incoerentes porque ficam buscando ensinar pelas histórias que criam, mas que não aceitam executar durante suas próprias vidas. Assim filosofava o tio mais velho da matilha quando foi arrancado dos pensamentos pelos gritos da menina Lua.

- Obaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa. Chegou o correio canino com a caixa de pães de queijo quentinhos que as tias Cris e Eneida mandaram. Obaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa.

Tio Chicão nem tentou argumentar acerca da impropriedade desse alimento porque quando deu por si ... comia um enooorme pão de queijo. A experiência de tempos idos dizia que ele teria problemas estomacais mais tarde. Mas, o que se leva da vida além de momentos de felicidade? A menina Lua comendo pães de queijo quentinhos, oferecendo os demais para a matilha, abanando o rabo toda feliz valia o futuro mal estar. E lá estava ela separando alguns deles para levar ao Bim. Menina Lua é a alma da matilha.

Março/2011
Marly Spacachieri